domingo, 27 de janeiro de 2013

História de pescador

Zé Marrão morria de medo. Quando a pescaria terminava – sempre depois da meia-noite, uma escuridão danada, a praia vazia –, ele acomodava nas costas a tarrafa com 15 quilos de peixe e, logo no início da caminhada, bem na frente daquele morro onde se amontoam crânios e ossos humanos, seus cabelos começavam a subir. 
Iam subindo, subindo, e Zé Marrão caminhando, e os cabelos subindo, e Zé Marrão caminhando, e os cabelos subindo, e Zé Marrão correndo, correndo, correndo, até que finalmente ele passava do morro e os cabelos desciam.
– Ainda hoje, se eu andar por ali, o cabelo se arrepia. Mas só de noite. De dia, nunca houve nada – afirma José Carlos Silveira, o Zé Marrão, 66 anos.
E teve uma vez que uma espécie de porco preto, com orelhas enormes e pontudas, rápido feito uma flecha, desceu correndo o mesmo morro em direção ao pescador João Lucindo, que tarrafeava com o filho pequeno no fim da tarde. João Lucindo, hoje aos 82 anos (foto abaixo), diz que ergueu o menino da areia e saiu em disparada, com a criança nos braços, mas quando olhou para trás, adivinhe?, não havia mais nada.

O tal morro é um dos quatro sambaquis do Farol de Santa Marta – balneário de Laguna que abriga a maior comunidade pesqueira de Santa Catarina. Conforme a doutora em Arqueologia Madu Gaspar, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os sambaquis foram cemitérios indígenas: há seis mil anos, quando alguém morria, os antepassados dos índios sepultavam o corpo em meio a milhares de conchas recolhidas à beira-mar. Mas os pescadores duvidam da tese científica, dizem que foi coisa do dilúvio – aquele da Bíblia, quando Noé construiu sua arca.– O dilúvio remexeu o mar inteiro, matou um monte de bicho e gente. E ficou tudo amontoado ali. Se os índios fossem comer os mariscos de todas aquelas conchas, teriam morrido 
de diarreia – conclui Zé Marrão (foto à esquerda), lembrando da noite em que oito cavalos relincharam, correram e corcovearam ao pé do morro “como quem via fantasma”.

Um dia, a comunidade inteira decidiu enfrentar o sambaqui. João Lucindo se mostra culpado enquanto reconta a história – faz quase 50 anos, mas as marcas seguem lá. Naquela época, não havia estrada para os pescadores acessarem outras praias: eles se deslocavam de caminhão em meio às dunas e, com frequência, atolavam as rodas na volta para casa, não conseguiam retornar. Passavam dias dormindo no frio do relento. Como o poder público nunca construía estrada nenhuma, resolveram arrancar as conchas do sambaqui para usá-las como cascalho até as ossadas que saltavam viraram brita.Hoje, no topo do morro, há um buraco do tamanho de um campo de futebol, com três metros de altura: foi tudo destruído e retirado com caçambas 
e mais caçambas de caminhões. A estrada bem que quebrou um galho por um tempo.

Mas eu não sabia que isso era um patrimônio da história do país, não sabia que era tombado, não sabia que era proibido mexer. Se soubesse, jamais teria feito nada disso desculpa-se João Lucindo, garantindo que ninguém daquela comunidade nunca mais vai enfrentar os sambaquis.
Texto: Paulo Germano | Fotos: Bruno Alencastro




Nenhum comentário:

Postar um comentário